gastronomia: um ritual

"Não se come apenas para saciar a fome. O alimento se reveste de valor simbólico e, eventualmente, se transforma em objeto ritual"


Esse trecho, tão cheio de verdade, encontra-se na reportagem "O ritual da comida", da revista eletrônica "Vida Simples". No texto também é possível observar, numa perspectiva político-social, como o alimento pode servir como uma forma de identidade cultural, que serve tanto para segmentar, como para unir povos.



Texto completo abaixo:





O ritual da comida

Em muitas religiões, aquilo que se coloca no prato é uma forma de se atingir um estado de graça. Afinal, mais que aplacar a fome, o alimento também pode nutrir nossa fé.

Publicado em 01/04/2013
Rafael Tonon
Edição 130

 Como muitas garotas de ascendência judaica, a chef Andréa Kaufmann aprendeu a cozinhar e a manipular as panelas com sua mãe e sua avó, que estavam sempre a postos na cozinha. Apesar de a família não seguir uma dieta restritiva judaica no dia a dia, Andréa lembra que nas festas e celebrações religiosas era comum ver sua mama iídiche dedicar-se ao preparo de pratos especiais para as datas.

"No judaísmo, as celebrações sempre acontecem em volta da mesa farta, com cada prato tendo um significado especial", conta Andréa. Não é diferente em muitas outras religiões, nas quais o alimento, mais que nutrir, tem um significado próprio associado à divindade. Ao longo da história, muitos povos viam a comida como uma dádiva, um milagre divino. "Muito antes de as principais correntes religiosas de hoje se consolidarem (como o cristianismo, o islamismo e o próprio judaísmo), já eram comuns os ritos de oferendas aos deuses, bem como as festas que vão celebrar as colheitas, fundamentais para aplacar a fome dos povos antigos", diz Sandro Dias, professor de História da Gastronomia do Centro Universitário Senac, em Águas de São Pedro (SP). Nesse contexto, a refeição adquire uma simbologia toda especial, repleta de significados.

Andréa se lembra em especial do Rosh Hashanah, o Ano Novo judaico, em que logo depois de uma celebração na sinagoga, as famílias voltam para casa para comer. A refeição começa sempre com a maçã, que representa o início, remetendo a Adão e Eva (responsáveis pela primeira e mais famosa transgressão alimentar da humanidade). Depois, serve-se o Chalá (pão em formato circular, representando algo cíclico, sem fim) com patês e, em seguida, os pratos. O peixe é um dos poucos animais representados à mesa, por ele só nadar para a frente - como os judeus esperam que seja seu novo ano. "Uma das minhas mais doces lembranças é a torta de maçã que minha avó fazia para essa data", relembra Andréa.

É da admiração de ver a avó cozinhar nessas ocasiões que Andréa diz ter começado a se encantar com a cozinha. Ela separava as espinhas dos peixes, ajudava a quebrar os ovos. E, assim, foi pegando gosto pelo ato de cozinhar. Até que, depois de deixar de lado a profissão de publicitária, ela resolveu abrir em 2007 seu primeiro restaurante, uma delicatessen especializada em pratos judaicos. "Recebia muita gente que, como eu, tinha lembranças dessa gastronomia festiva, mas que nem sempre tinha a chance de comê-la no dia a dia", afirma ela. Hoje, em seu novo restaurante, o AK Vila, na Vila Madalena, em São Paulo, passou a oferecer um cardápio mais "variado". Mas ainda mantém algumas iguarias do repertório gastronômico judaico, como uma bruschetta que leva tâmara (um dos sete elementos bíblicos citados no Deuteronômio), falafel, pastrami e goulash de vitela - esta última uma receita em homenagem à avó húngara. "Mesmo inconscientemente, acabo me voltando a esses sabores, não tem jeito. É algo que faz parte da minha história e da minha relação de adoração com a gastronomia", define.
  
Comer ou não comer
 O repertório culinário passa a fazer parte de celebrações e ocasiões tão especiais que ganham um significado e um valor únicos. Inclusive de privação, em alguns casos. "Abstinência e proibição, constante ou temporária, de certos alimentos são, geralmente, considerados meios de atingir estado de graça e santidade", afirma Ariovaldo França, autor do livro De Caçador a Gourmet - Uma História da Gastronomia (Editora Senac). Para os israelitas, por exemplo, o uso de fermento se transformou em objeto de restrições religiosas, e a fermentação, símbolo de corrupção e deteriorização. Na doutrina hindu, o consumo de carne de vaca é proibido, baseado no conceito de reencarnação. A vaca é considerada descendente direta de um espírito sagrado para esse povo, o Kamadhenu. "Mas é interessante notar que 1400 anos antes de Cristo, na Índia, o Rigveda [o mais antigo livro da literatura hindu] descreve uma sociedade pastoril que se deleitava com festins em que se comia a carne de vaca", afirma França. Em tempos que precedem a Páscoa, seguidores mais fervorosos da cultura católica cristã não consomem carne vermelha como forma de se abster de comer algo nobre em homenagem ao sacrifício de Jesus, que morreu para salvar seus seguidores. Há quem prefira se abster de outros prazeres culinários (como doces, chocolate, álcool etc.) para encarar os 40 dias da Quaresma.

Essas regras comprovam que o ser humano é cerimonioso no comer e tem uma atitude complexa em relação ao alimento. "Não se come apenas para saciar a fome. O alimento se reveste de valor simbólico e, eventualmente, se transforma em objeto ritual", diz França. Nas culturas tradicionais, o alimento de base está frequentemente associado a uma divindade e sua produção representa parte da atividade dessa relação. No candomblé, por exemplo, os orixás representam símbolos e forças da natureza - como fogo, água, vento, etc. - e cada um deles tem uma preferência gastronômica que deve ser meticulosamente seguida nas oferendas. Por isso, só quem cozinha nos terreiros são as iabassês, mães de santo que guardam os segredos do preparo das receitas e precisam seguir as regras de sua preparação - que vão desde as vestes que elas precisam utilizar até cuidados como não misturar utensílios em receitas para orixás diferentes.
  
Necessidade de conexão
 Curiosa com o fato de cada orixá ter seu prato representativo e com a riqueza gastronômica que isso permite em combinações de sabores, a chef Bel Coelho desembarcou em Salvador para passar uma semana no terreiro Gantois, um dos mais conhecidos da capital baiana, a fim de desvendar os segredos dos preparos das iabassês e conhecer mais esse ritual. "Não sou do candomblé nem sigo uma religião específica, mas fiquei intrigada em conhecer uma crença em que os alimentos tinham papel tão importante", conta. Da experiência, Bel criou um cardápio especial para o projeto Clandestino, no qual recebe no segundo andar de seu restaurante Dui, em São Paulo, comensais para provar menus degustação, sempre baseados em um tema. "Mais do que no paladar e nas receitas em si, me abri para basear minhas criações nas cores vivas, nos cheiros e na mitologia de cada orixá. Como não podia cozinhar, observei tudo o que pude", diz.

Para homenagear Iemanjá, talvez a orixá mais conhecida dos não adeptos do candomblé, Bel resolveu apostar em sua vaidade, servindo um robalo cozido e grelhado sobre pérolas de leite de coco e uma farinha de coco tão fina que se assemelha a areia. O prato onde a receita é servida é feito de espelho, como o utensílio que a rainha do mar carrega nas mãos. "A receita ainda leva geleia de rosas, em alusão às oferendas feitas a ela. E o leite de coco foi escolhido para simbolizar o lado materno de Iemanjá". Outros 15 orixás ganharam, pelas mãos da chef, releituras e inspirações em sua representatividade mitológica. "Realmente me fascina essa necessidade do ser humano de se conectar. O rito é talvez a forma mais primária de conexão que temos, por isso ela é tão representativa."

Por estar ligada a esse conceito de conexão e celebração da vida, comida não combina com conflitos. Essa, pelo menos, é a máxima do chef armênio Kevork Alemian, que, em 2001, fundou a ONG Chefs4Peace (chefs pela paz, em tradução livre). O intuito dele e de outros cozinheiros que se uniram à empreitada é promover a convivência pacífica entre povos cuja prática religiosa está associada à guerra e à discórdia. A proposta é unir muçulmanos, judeus e católicos por meio da comida. Hoje composta por 20 cozinheiros, a Chefs4Peace tenta resgatar receitas ancestrais que deram origem aos pratos que têm valor sagrado para cada uma dessas religiões. "Pesquisamos em livros sagrados o que se comia na origem da culinária judaica, da alimentação cristã e dos pratos de influência árabe, que deram origem aos costumes dos muçulmanos", diz Alemian. O foco são alimentos como o sal, o pão e até o azeite de oliva, que têm papel fundamental para essas religiões. "Eles são o que eu chamo de ingredientes da paz."

Para fomentar essa convivência pacífica e incentivar não só a troca de receitas mas também o intercâmbio de pontos de vista, a ONG fundada por Alemian promove eventos em que chefs dessas doutrinas diferentes se reúnem para cozinhar juntos, em eventos e palestras em todo o mundo. Agora o projeto é fazer funcionar uma escola que já opera de forma experimental no vilarejo de Abu Gosh, a 10 km da cidade sagrada de Jerusalém, para receber jovens das mais diversas religiões e etnias. "Queremos mostrar que, onde há a devoção pela comida, os conflitos não têm lugar para existir." É um projeto bastante otimista para uma região em que as guerras estão enraizadas no cotidiano dos moradores. "Nossa arma para lutar pelo que acreditamos é a faca, que pode ser perigosa, mas também conciliadora, quando a usamos para criar pratos deliciosos e trocas significativas", conclui Alemian. Algo que só a crença no poder transformador da alimentação pode oferecer.


Rafael Tonon é colaborador antigo de vida simples e fez a reportagem de capada edição 129: "Viva do seu jeito".

ainda no lanchinho...

     Na publicação, "Pausa para um lanchinho!", sobre a comemoração do Dia Mundial da Alimentação, pudemos acompanhar alguns números relevantes sobre o desperdício de alimentos, assim como os problemas que uma alimentação desequilibrada pode causar em crianças (desnutrição e obesidade, por exemplo).

   Ser obeso ou desnutrido, no caso acima, normalmente não é uma questão de escolha, principalmente pelo fato de serem crianças. Porém, também, existem os que optam entre esses extremos. Suas motivações e expectativas variam bastante, mas o que não varia é o resultado dessas escolhas: aqueles que escolhem entre a anorexia e a obesidade, dificilmente serão pessoas saudáveis.

  Apesar de serem consideradas doenças, podemos encontrar algumas manifestações artísticas relacionadas à obesidade e a anorexia. No caso abaixo, temos o ensaio "Full Beauty", do fotógrafo Yossi Loloi. Loloi acredita, segundo o site "Hypeness", que em suas fotos existe um foco na feminilidade das mulheres como uma forma de protesto contra a descriminação e que essa é apenas uma forma diferente de beleza, pois beleza não pode ser medida e não tem nada a ver com um padrão. Apesar de validar a iniciativa do fotógrafo na matéria "Fotógrafo cria polêmica ao fazer ensaio sensual verdadeiro com mulheres obesas", o site diz, em nota, não incentivar a obesidade, pois é uma doença e não é saudável.

  Em contraposição ao ensaio acima, o ensaio fotográfico "Thirty-Two Kilos" (Trinta e Dois Quilos), de Yvonne Thein, segundo o site Fashionatto, demonstra o sofrimento de muitas garotas ultimamente. Na matéria "'Trinta e Dois Quilos', uma interessante série fotográfica sobre anorexia e bulimia", o site destaca que a fotógrafa quis atrair a atenção para problemas causados pelos movimentos pró-anorexia e bulimia.

  Duas perspectivas diferentes que chocam da mesma maneira. Abaixo, algumas fotos. 


Full Beauty











(Créditos nas fotos)



Thirty-Two Kilos






pausa para um lanchinho!

      16 de Outubro é o Dia Mundial da Alimentação, cujo slogan desse ano é Pessoas saudáveis dependem de sistemas alimentares saudáveis e o tema é sistemas alimentares saudáveis para segurança alimentar e nutrição. E, para não passar em branco, "comemoraremos" com uma reportagem da AFP (Agence France-Presse), publicada no portal de notícias R7.


 Nela encontramos alguns dados preocupantes da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) em relação à alimentação das crianças pelo mundo, assim como iniciativas simples que geram resultados positivos para à comunidade. Abaixo podemos ler o texto completo. 

Veja também: Se política é um dos seus temas de interesse, acesse a revista Baderna: o junho que mudou a história!


Site R7 (www.r7.com)

No Dia Mundial da Alimentação, desperdício de alimentos preocupa a FAO

Cerca de 1,3 bilhão de toneladas de alimentos produzidos no planeta vai direto para o lixo
A ONU (Organização das Nações Unidas) aproveitaram o Dia Mundial da Alimentação, comemorado nesta quarta-feira (16), para alertar o mundo em relação ao problema do desperdício de alimentos enquanto 842 milhões de pessoas passam fome, ressaltando, além disso, a importância de uma alimentação saudável em um contexto de aumento da obesidade.
    Cerca de um terço dos alimentos produzidos no planeta atualmente vai direto para o lixo, o que equivale a 1,3 bilhão de toneladas por ano, segundo a FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), sediada em Roma. Robert van Otterdijk, especialista em agricultura da FAO, disse que "com apenas um quarto disso, poderíamos alimentar 842 milhões de famintos.
    Mesmo reduzindo pela metade o desperdício de alimentos, seria necessário elevar em 32% a produção mundial de comida para alimentar a população mundial até 2050. Na situação atual, o aumento da produção de alimentos deve ser de 60% para atingir esse objetivo.
    Mathilde Iweins, coordenadora de um relatório sobre o custo do desperdício de alimentos, disse que "a soma das áreas agrícolas usadas para produzir alimentos que jamais serão consumidos é tão grande quanto o Canadá e a Índia juntos".
    Mas, para a FAO, focar no tipo de alimento a ser consumido é tão importante quanto o problema do desperdício, já que a desnutrição e as dietas mal balanceadas impõem altos custos para a sociedade, envolvendo problemas que vão desde as altas despesas relacionadas aos cuidados com a saúde até a perda de produtividade.
    — Uma em cada quatro crianças no mundo com menos de cinco anos está abaixo do peso ideal. Isso significa que 165 milhões de crianças são tão desnutridas que nunca alcançarão o máximo do seu potencial físico e cognitivo.
    Cerca de dois bilhões de pessoas no mundo vive com insuficiência de vitaminas e minerais essenciais para uma boa saúde, enquanto 1,4 bilhão de pessoas estão acima do peso.
    As crianças com atraso no crescimento podem estar mais suscetíveis ao risco de desenvolver problemas de obesidade e doenças relacionadas à idade adulta, em um ciclo preocupante de desnutrição.
    Das que estão acima do peso, "cerca de um terço é de obesos e corre o risco de adquirir doença cardíaca coronária, diabetes ou outros problemas de saúde".
    A agência pondera que, apesar de acabar com a desnutrição em todo o mundo "ser um grande desafio, o retorno deste investimento seria alto".
    — Se a comunidade internacional investisse 1,2 bilhão de dólares por ano durante cinco anos para reduzir as deficiências de micronutrientes, os resultados seriam traduzidos em mais saúde, menos mortalidade infantil e aumento de ganhos futuros. Isso geraria ganhos anuais no valor de 15,3 bilhões de dólares.
    A FAO disse estar particularmente esperançosa em relação a projetos que visam a "elevar o teor de micronutrientes dos alimentos básicos — seja através do 'biofortalecimento' ou do incentivo à utilização de variedades com um teor de nutrientes mais alto".
    Espera-se que o consumo de alimentos subutilizados e ricos em nutrientes, como certos insetos, por exemplo, possa se tornar moda.
    Com a luta contra a desnutrição sendo bem sucedida em alguns países e ficando para trás em outros, a FAO deu exemplos de métodos para ajudar a melhorar os sistemas alimentares.
    No Vietnã rural, peixes criados em tanques, galinhas usadas como fonte de fertilização e pequenas plantações em jardim reduziram a má nutrição tanto em crianças como em mulheres em idade fértil.
    Na Etiópia, um projeto envolvendo cabras elevou o consumo de leite e os rendimentos da região, ao ensinar às mulheres uma melhor gestão do animal, inclusive melhorando geneticamente a espécie.
    A FAO insistiu, porém, que projetos específicos de cada país devem ser apoiados globalmente para conter o desperdício.
    — Tirar o máximo de alimentos a partir de cada gota de água, pedaço de terreno, grão de fertilizante e minuto de trabalho economiza recursos para o futuro e torna os sistemas mais sustentáveis.
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